Privacidade como espaço de resistência: o não compartilhável como fundamento do comum
Prof. Dr. Bernardo Grossi
Uma das dimensões mais esquecidas da privacidade é justamente aquela que não se deixa capturar. Paradoxal? Não exatamente. A tradição da filosofia política nos demonstra que a ideia de privacidade sempre esteve atrelada à ideia de liberdade negativa, de fronteira, de limite ao poder, seja esse o poder público do Leviatã, seja o poder silencioso e contínuo da vigilância privada digital.
É comum que se pense a proteção de dados pessoais como um instrumento de regulação da circulação de informações. Porém, a lógica subjacente à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não é apenas uma gramática de fluxos e permissão. Ou ao menos não deveríamos permitir que o fosse. A LGPD aborda, sim, de hipóteses para o tratamento de dados pessoais, vincula bases legais, finalidades e contextos. Mas, acima de tudo, trata da contenção da devassa. E não apenas para nos proteger de abusos eventuais, mas para preservar um espaço irredutível de vida que não se compartilha porque não se negocia. Um espaço de existência que nos pertence não porque está juridicamente atribuído a nós, mas porque constitui o que somos e porque sem ele, nada, nem pessoa, nem autonomia, nem liberdade, pode subsistir.
A lógica civil-constitucional do direito brasileiro, ancorada no postulado da dignidade da pessoa humana, compreende o sujeito não como um átomo solto num mercado de relações voluntárias, mas como alguém situado numa teia de vínculos, expectativas legítimas e espaços de integridade pessoal. Judith Martins-Costa já advertia que a boa-fé objetiva não se esgota em deveres instrumentais, mas revela uma ética da confiança e da lealdade recíproca. Nesse contexto, o dado pessoal não é meramente um bem, mas uma extensão da própria pessoa. Quem o trata não assume apenas uma função econômica; assume uma responsabilidade existencial e é essa a percepção que escapa à superficialidade das análises mais comuns.
É por isso que a privacidade, como espaço de não direito, no sentido rodotàiano e perlingieriano do termo, não pode ser erodida por um reles consentimento tácito, tampouco reduzida a um ativo transacionável no mercado digital (que o diga a Tools for Humanity). A privatização da intimidade, quando capturada pela lógica da conveniência contratual, trai sua própria essência. Pois aquilo que se tenta transformar em moeda (o que lemos, onde andamos, com quem conversamos na madrugada e o que pensamos) é precisamente aquilo que, por sua natureza, precisa permanecer incomensurável.
Tomemos, por exemplo, a base legal do “interesse legítimo” do controlador, prevista no inciso IX do artigo 7º da LGPD. Ela não é uma autorização genérica para submeter o titular ao escrutínio das métricas comportamentais; ao contrário, exige compatibilidade com finalidades conhecidas, relação concreta com os interesses do titular e o respeito à expectativa socialmente legítima de não invasão. O que vem acontecendo, contudo, é a tentativa de capturar essa base jurídica como véu do consentimento (potencialmente) negado, a prática disfarçada da coleta indiscriminada sob um pretexto técnico qualquer.
Precisamos resgatar o caráter contramajoritário do direito à privacidade. Ele não serve para garantir o pleno funcionamento dos modelos de negócio baseados no tráfego de dados. Serve para impedir que sejamos dissolvidos em estatísticas e tendências.
Por trás dos algoritmos há vontades. E há corpos. E há escolhas. Quando tudo é perfilado, nada é privado e quando nada é privado, não há o que resistir. A privacidade, então, é mais do que um direito: é uma recusa. Uma recusa de sermos integralmente legíveis, uma recusa de estarmos integralmente disponíveis ao escrutínio de softwares e mercados.
E é exatamente nesse não compartilhável, nesse resíduo de silêncio, de opacidade, de incomunicabilidade radical que reside a dignidade do comum.