**A Ilusão do Consentimento na Era da Inteligência Artificial**
A promessa fundacional da proteção de dados pessoais repousa sobre a autodeterminação informativa: a ideia de que o sujeito deve ter poder sobre os dados que o representam. Mas essa promessa foi soterrada pela lógica das plataformas digitais. O “consentimento informado”, pilar da privacidade contratual, esfarelou-se diante da assimetria técnica das big techs, que transformaram a coleta e o processamento de dados em um mercado opaco e predatório.
A experiência nos mostra que o consentimento, tal como concebido nas normas de proteção de dados, tornou-se um ritual vazio. Usuários “concordam” sem conhecer exatamente com o quê, clicam em botões sem possibilidade real de negociação, aderem a termos que compreendem apenas superficialmente. A inteligência artificial amplia essa problemática ao acelerar e sofisticar a exploração dos dados como insumo econômico. Os algoritmos decifram nossos hábitos antes que nós mesmos tenhamos plena consciência de nossos padrões, prevendo desejos, manipulando escolhas e reduzindo a privacidade a um artefato do passado. Diante desse quadro, podemos continuar sustentando que há uma escolha verdadeiramente livre?
O direito civil-constitucional, ao conceber a dignidade da pessoa humana como fio condutor das relações privadas, não pode tolerar um modelo em que a assimetria digital extirpa a autonomia. A boa-fé objetiva exige transparência substancial, não meramente formal; impõe que consentimento não seja apenas uma formalidade processualística, mas um ato verdadeiramente livre e informado. No entanto, o que temos hoje são cláusulas predispostas, meticulosamente redigidas para garantir a explotação massiva de dados, sem qualquer possibilidade de resistência real. Não há espaço para a autonomia em uma estrutura que reduz o cidadão a fornecedor passivo de informações.
Se a privacidade deve, de fato, ser protegida como direito fundamental, impõe-se um modelo que vá além do formalismo do consentimento. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais exige que olhemos para os contratos digitais e para a exploração algorítmica dos dados sob a ótica do equilíbrio e da justiça. Não basta assegurar que o usuário tenha “concordado” — é preciso garantir que ele tenha compreendido os impactos dessa concordância, e que ela não seja adquirida por meio da coerção estrutural das grandes plataformas.
Precisamos urgentemente repensar se o consentimento, da forma como se apresenta hoje no direito da proteção de dados, ainda é um mecanismo juridicamente legítimo ou se se tornou apenas um simulacro de proteção, incapaz de conter os efeitos da hiperexploração digital. Afinal, um direito fundamental que pode ser esvaziado por meio de um clique é um direito que já se perdeu.
Prof. Dr. Bernardo Grossi