Editorial da semana: Transformações e paradoxos da privacidade

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Privacidade não se Negocia: O Paradoxo da Autonomia Contratual na Era Digital

Prof. Dr. Bernardo Grossi

A narrativa jurídica que sustenta a autonomia privada como princípio estruturante do Direito Privado sempre flertou com paradoxos. O que seria, afinal, a liberdade contratual em um ambiente em que os dados pessoais se tornaram moeda corrente, mas cujo valor é ditado unilateralmente por agentes econômicos? Essa tensão torna-se ainda mais evidente diante de contratos digitais que instrumentalizam a perda progressiva da autodeterminação informativa.

Sob a ótica do direito civil-constitucional, a proteção de dados pessoais é uma manifestação da dignidade da pessoa humana, e não se reduz a um mero componente mercantilizável. E aqui emerge a questão central: até que ponto a autonomia privada pode justificar a cessão indiscriminada da própria esfera privada? O argumento da liberdade contratual esbarra no fato de que a aceitação de termos abusivos não é uma escolha genuína quando o indivíduo não possui alternativas reais. O consentimento torna-se, assim, mera formalidade burocrática, esvaziada de qualquer substância jurídica.

O fenômeno do “pay or okay” — oferta de serviços mediante o consentimento para o tratamento de dados ou o pagamento para impedir esse uso — materializa essa distorção de forma contundente. A privacidade, que deveria ser protegida como direito fundamental, é reduzida a uma mercadoria, sujeita às leis da oferta e da demanda. O problema, no entanto, não é apenas econômico, mas estruturalmente jurídico: ao permitir essa lógica, nós esvaziamos o próprio conceito de autodeterminação informativa e transformamos a proteção de dados em um privilégio acessível apenas àqueles que podem pagar.

A jurisprudência europeia já aponta limites a essa apropriação da privacidade pela lógica mercantil. Recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia abandonou a ilusão de um consentimento livre em ambientes digitais marcados pela ausência de alternativas viáveis (caso Meta Platforms, maio de 2023). Esse entendimento deveria inspirar nossa interpretação no Brasil: a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) deve ser lida sob uma perspectiva constitucional, na qual a dignidade do titular se sobrepõe à exploração indiscriminada de seus dados.

Os maiores desafios para essa efetivação residem na eficácia horizontal dos direitos fundamentais: como garantir que empresas privadas respeitem a privacidade sem que isso implique uma intervenção estatal excessiva? A resposta está no equilíbrio entre a autorregulação responsável e a imposição de limites jurídicos claros ao poder econômico. Mas é preciso ir além: a educação digital e a conscientização jurídica da população tornam-se ferramentas indispensáveis para que o consentimento seja uma expressão real da autonomia privada, e não uma mera formalidade jurídica desprovida de qualquer poder de autodeterminação.

O consentimento informado não pode ser um passe livre para a exploração da privacidade, sob pena de erodirmos as bases principiológicas do Direito Privado. Se a autonomia contratual for invocada para legitimar um mercado onde os indivíduos são continuamente coisificados por meio da cessão de seus dados, estaremos diante da negação mais profunda da dignidade humana. A pergunta que nos cabe, então, não é se a privacidade tem preço, mas se estamos dispostos a admitir que a dignidade é um ativo negociável.

 

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