A privacidade como espaço de resistência: o que (não) podemos entregar à lógica do mercado
Prof. Dr. Bernardo Grossi
A história dos direitos fundamentais é, antes de tudo, uma história de resistência. Resistência contra a força bruta do Estado absoluto, em um primeiro momento, e depois contra a insidiosa invasão do mercado nos espaços mais íntimos da pessoa humana. A privacidade, nesse percurso, não é apenas um direito; ela é o território sagrado onde a dignidade humana se afirma contra a colonização pelo econômico.
Hoje, no entanto, parece que desaprendemos essa lição histórica. Cedemos progressivamente nossas informações pessoais — nossa trajetória virtual, nossos hábitos e preferências — em troca de conveniências rápidas, produtos “personalizados” e serviços “gratuitos”. A hegemonia de plataformas digitais e o uso intensivo de dados comportamentais não expressam apenas um avanço tecnológico, mas a tentativa — cada vez mais sofisticada — de captar aquele núcleo existencial de liberdade e autonomia que a proteção da privacidade deveria, precisamente, resguardar.
Enxergar a proteção de dados pessoais apenas como um direito individual de veto ou consentimento é um erro conceitual. Nessa leitura simplista, reproduzimos uma concepção contratualista ultrapassada da autonomia individual, aquela mesma que o paradigma civil-constitucional já superou. A proteção de dados, ancorada no princípio da dignidade da pessoa humana e articulada pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, não se limita à previsão de autorizações negociais ou consentimentos formais. Ela exige a construção de ambientes que respeitem a livre formação da identidade pessoal e o espaço de autodeterminação informativa, como propôs Stefano Rodotà de forma pioneira.
Nesse sentido, é preciso dizer de maneira clara: a autonomia privada em matéria de proteção de dados não é um “tudo pode” oferecido à lógica contratual. Pelo contrário, é um “não pode”, um imperativo de contenção contra práticas abusivas de extração de dados que, ainda que formalmente consentidas, lesionam direitos indisponíveis da pessoa humana.
Trata-se, pois, de compreender a privacidade como um espaço de “não mercado”, no qual a dignidade se afirma precisamente na recusa da mercantilização de aspectos essenciais da condição humana. Essa leitura, profundamente civil-constitucional, impõe limites materiais à liberdade econômica das empresas e plataformas digitais. A privacidade, assim como outros direitos da personalidade, não pode ser reduzida a mais um ativo circulante na larga prateleira de bens disponíveis para negociação.
Ao olharmos para a realidade brasileira, surge um desafio ainda mais agudo. Nossa tradição jurídica, inspirada nas experiências europeias, sobretudo a alemã e a italiana, foi construída sob a lógica de uma proteção forte da dignidade humana nas relações privadas. Mas, na prática, ainda tendemos a importar modelos estadunidenses de “privacidade como serviço” ou “como commodity” — uma visão claramente incompatível com nosso desenho constitucional.
Neste contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) deve ser interpretada segundo um critério material e teleológico, e não pelo esvaziado positivismo do rol enumerativo de suas bases legais. A dignidade da pessoa humana exige que os fundamentos autorizativos previstos na LGPD (como o consentimento, a execução de contrato, o exercício regular de direitos, entre outros) não sejam vistos como portas abertas ilimitadamente, mas como cláusulas interpretadas sob a ótica da proteção concreta do ser humano em sua esfera íntima.
O futuro da proteção de dados no Brasil não pode se limitar à importação acrítica de soluções utilitaristas nem à mera celebração de procedimentos regulatórios. É preciso reconstruir a centralidade da pessoa humana no direito privado contemporâneo, exatamente como nos ensinaram Maria Helena Diniz, Gustavo Tepedino e, mais modernamente, Judith Martins-Costa: colocar o humano no centro das relações jurídicas, e não os produtos, os contratos ou a engenharia de interfaces.
Enquanto não retomarmos essa consciência, continuaremos, inadvertidamente, entregando à lógica do capital aquilo que deveria permanecer, por princípio, inviolável: nossa vida privada.