Dark patterns e boa-fé: o contrato que oculta sua própria armadilha
Prof. Dr. Bernardo Grossi
É curioso como as formas mais insidiosas de violação à privacidade não se apresentam como agressões abertas, mas como escolhas triviais. Clicar em um botão para aceitar cookies, rolar um aplicativo até surgir a opção “continuar com meus dados”, assinar um plano sem perceber que, junto dele, estamos abrindo mão de parte significativa de nossa autodeterminação informativa. Não há estardalhaço, não há coação explícita. Apenas o silêncio do design, meticulosamente arquitetado para conduzir, não raramente manipular, o comportamento do usuário. É nesse ponto que os chamados dark patterns — padrões escuros de interface e design — deixam de ser apenas uma estratégia duvidosa de usabilidade e passam a configurar violação marcante à boa-fé objetiva nas relações contratuais.
A expressão dark patterns, consagrada por Harry Brignull, designa estruturas de navegação aparentemente neutras, mas construídas com o propósito deliberado de induzir o usuário ao consentimento, ao fornecimento de dados ou à vinculação contratual de modo não refletido. Não se trata de erro — trata-se de engenharia psicológica. A interface que oculta a opção “recusar”, a linguagem ambígua sobre o uso de dados, o botão desproporcionalmente chamativo para consentir: todos esses mecanismos confrontam de forma direta os deveres anexos de lealdade, cooperação e transparência que compõem a função normativa da boa-fé objetiva.
A questão central, portanto, não é tecnológica. É dogmática. E profundamente civilista.
Ao se analisar os dark patterns sob as lentes do direito civil-constitucional, evidencia-se o esvaziamento da autonomia privada em seu núcleo mais essencial. A autodeterminação informativa, enquanto dimensão da dignidade da pessoa humana e da moldura constitucional da personalidade, exige que o sujeito compreenda, em termos concretos, aquilo que está autorizando, consentindo ou contratando. O contrato digital que se nutre de confusão, ocultação e pressão subliminar não é simplesmente irregular — é eticamente inadmissível.
Há um incômodo paralelo entre essas práticas e os vícios de consentimento reconhecidos na tradição civilista: erro, dolo, coação. A diferença é que aqui o vício não é um acidente do consentimento, mas seu ponto de partida. Não se trata de promessas falsas, mas de trajetórias comunicacionais enviesadas desde a origem. Não há, nesse cenário, liberdade contratual no sentido exigido pela Constituição. O que há é aderência mecânica, que simula a escolha, mas esvazia sua substância.
Enfrentar os dark patterns impõe, assim, um redirecionamento da dogmática contratual: não basta tolerar o mínimo formal da manifestação de vontade, é preciso interrogar a integridade comunicativa do processo em que essa vontade se formou. A lógica funcional da boa-fé, como propõe Judith Martins-Costa, não se esgota no cumprimento das palavras escritas: ela se realiza — ou se subverte — na forma como se estrutura a comunicação entre os contratantes. No cenário digital, esse desafio é ainda mais urgente.
O que está em jogo é uma disputa por modelos de racionalidade jurídica. A racionalidade da maximização do engajamento, do extrativismo de dados e da atenção disputada pixel a pixel colide com a racionalidade constitucional que sustenta a centralidade da pessoa humana no próprio tecido do direito civil. Não é apenas uma questão de privacidade; é uma reorganização silenciosa das categorias fundantes da teoria geral do contrato.
Talvez, mais do que proibir determinadas práticas, devamos relembrar o que o contrato deveria ser: um espaço de encontro entre ideias, expectativa e confiança recíproca — não um instrumento de opressão vernaculada pelo design.
Se quisermos falar seriamente em proteção de dados no Brasil, é preciso avançar muito além da conformidade formal com a LGPD. O combate aos dark patterns exige a reconstrução ética da atuação contratual no ambiente digital. Trata-se, em última instância, de decidir se o contrato continuará a ser um instrumento de liberdade, ou se aceitaremos que, em nome da “usabilidade”, ele se torne uma armadilha legitimada pela aparência da escolha.
Essa decisão não é tecnológica. É jurídica. E, acima de tudo, política.
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