Editorial da semana: Transformações e paradoxos da privacidade

Posted by:

|

On:

|

Contratos digitais, identidade e soberania: quando a privacidade desaparece no clique aceitável
Prof. Dr. Bernardo Grossi

Vivemos sob uma paradoxal revolução das liberdades. De um lado, o espaço digital multiplica a visibilidade, a expressão e a autodeterminação. De outro, o mesmo ambiente asfixia a autonomia sob uma lógica algoritmizada de consentimentos automáticos, escolhas binárias e profusão de contratos de adesão travestidos de interações personalizadas. A privacidade, nesse contexto, deixou de ser a barreira que protege a intimidade para se tornar um resquício residual de soberania pessoal que resiste invisivelmente à coleta de dados, à vigilância e à monetização da identidade.

Ao aceitarmos, sem real possibilidade de negociação, termos de serviço e políticas de privacidade extensas, ambíguas e intrinsecamente desequilibradas, firmamos pactos sem vontade, inseridos em estruturas contratuais que minam os fundamentos clássicos do negócio jurídico. Voluntariedade, boa-fé e equilíbrio dão lugar a uma lógica de desigualdade institucionalizada, onde o sujeito de direitos se converte em recurso informacional. E isso não é fruto de ingenuidade ou má técnica contratual. É, antes, resultado deliberado de uma arquitetura que se especializou em obscurecer e conduzir o comportamento.

Nesse contexto, o consentimento capturado — via dark patterns, interfaces enganosas, dispositivos de urgência ou premiações marginais — deforma a noção mesma de autonomia. Há uma linha tênue entre decidir e ser induzido a decidir. Quando o clique no “aceito” passa a ser condicionante para acesso a um serviço ou mesmo para a realização da vida cotidiana (bancarizar-se, socializar, obter acesso à saúde, educação, trabalho), a liberdade desaparece da relação jurídica.

A teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, no entanto, impede uma leitura conformista dessas práticas. Ela nos convida a rearticular o direito privado enquanto lócus de proteção da pessoa humana contra os excessos do poder, seja ele estatal ou privado. A autonomia, nesse novo cenário, não pode ser lida como um cheque em branco para a renúncia à própria identidade informacional. É preciso recordar, com Gustavo Tepedino, que viver em sociedade implica reconhecer que “a liberdade de contratar não é liberdade de oprimir”.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/18), nesse plano, não é apenas um instrumento normativo de regulação técnica. Seu substrato axiológico é profundamente civil-constitucional: repousa na proteção da dignidade da pessoa humana, na afirmação da autodeterminação informativa e na construção de um modelo de sociedade que proteja o indivíduo frente à lógica predatória da informação. Não é coincidência que a LGPD seja tutelada em sua constitucionalidade, como se pode ver na ADI 6387. Nem tampouco é irrelevante que no RE 1.010.606 a Suprema Corte tenha reconhecido a proteção de dados como direito fundamental autônomo.

Mas voltemos à prática contratual: é razoável supor que alguém “consente” com o rastreamento de sua navegação para além dos limites do site acessado, apenas porque não viu a caixa de cookies configurada para induzir sua anuência? A resposta, à luz da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos (transparência, lealdade, cooperação), só pode ser negativa. Tampouco é legítimo transfigurar a base legal do consentimento em salvo-conduto para coleta indiscriminada, especialmente quando o tratamento de dados é desproporcional, sem real utilidade para a finalidade alegada e desprovido de mecanismos fáceis de revogação ou oposição.

O grande desafio, portanto, está em reconfigurar a própria cultura jurídica para que a proteção de dados seja compreendida não como entrave à inovação, mas como elemento de legitimação das relações jurídicas em ambiente digital. Isso exige não apenas leis mais robustas, mas também uma releitura ética da função social do contrato, da empresa e do próprio mercado digital.

Privacidade, afinal, não é silêncio, nem reclusão. É fala qualificada. É dizer: aqui eu decido até onde posso ser visto. E, sobretudo, é reconhecer — como bem advertiu Stefano Rodotà — que proteger dados pessoais é proteger o próprio ser humano em sua integridade, liberdade e inviolabilidade.

Se o direito não for capaz de reivindicar esse protagonismo, resta o perigo de naturalizarmos a servidão informacional como custo necessário para “estar online”. E isso não é modernidade. É regressão.

Posted by

in