Editorial da semana: Transformações e paradoxos da privacidade

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A arquitetura do consentimento e a falácia da escolha no mundo digital
Prof. Dr. Bernardo Grossi

Ao aceitar os “termos e condições”, quantas vezes o sujeito, imerso na rotina digitalizada, acredita estar fazendo uma escolha? O gesto de clicar em “aceito” parece trivial, quase automático. No entanto, por detrás desse simples movimento reside uma das mais enganadoras ficções jurídicas do nosso tempo: a aparência de consentimento como substituto de uma verdadeira autodeterminação informativa.

O problema está, precisamente, na forma como o discurso da autonomia se desdobra no ambiente virtual. Desde o Código Civil de 2002, o direito civil brasileiro experimenta uma inflexão paradigmática que desloca a régua da disciplina privada da liberdade absoluta para um equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, entre vontade e dignidade. Essa transformação não foi gratuita: ela nasce da percepção de que a autonomia privada, em tempos de estruturas assimétricas de poder, pode converter-se em instrumento de opressão, quando dissociada de seus fundamentos normativos.

Transportada para o campo da proteção de dados pessoais, essa constatação ganha contornos ainda mais agudos. À retórica da liberdade de escolha, os operadores do mercado digital adicionam uma arquitetura intencionalmente complexa: formulários opacos, textos extensos, janelas intrusivas, design persuasivo. Esses mecanismos — que a doutrina tem qualificado como dark patterns — não são mera filigrana. São estruturas performativas cuja função é exatamente obscurecer a vontade, distorcer a percepção de risco e induzir comportamentos que, em muitos casos, contradizem os próprios interesses daquele que “consente”.

A lógica dos dark patterns pode ser interpretada como violação direta aos deveres anexos da boa-fé objetiva — especialmente os deveres de informação, lealdade e cooperação. Um exemplo claro é o chamado “privacy Zuckering”, padrão em que a recusa ao compartilhamento de dados é tornada extremamente difícil, enquanto a aceitação, por outro lado, é um clique amigável e inevitável. A isso se soma o “trick wording”, universo de ambiguidade semântica que esvazia qualquer possibilidade de escolha consciente. A voluntariedade nesses casos é mera aparência, e o consentimento, descaracterizado como manifestação válida de vontade.

Ora, se o consentimento se degrada a um ato automatizado e não reflexivo, ele deixa de cumprir a função legitimadora do tratamento de dados prevista na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A interpretação das bases legais da LGPD como um rol exaustivo — como se representassem um catálogo fechado de hipóteses legitimadoras — esbarra no espírito principiológico da própria lei. Na hermenêutica que orienta o direito civil-constitucional, especialmente a partir do influxo doutrinário de Gustavo Tepedino, Pietro Perlingieri e Maria Helena Diniz, a dignidade da pessoa humana não apenas funda o sistema, mas o perpassa com caráter transversal e corretivo. Nesse contexto, o “consentimento” opaco ganha ares de mera ficção jurídica a serviço do poder econômico.

O desafio que se impõe é, portanto, de natureza estrutural: como reinventar a arquitetura contratual da era digital de modo a revalorizar o espaço da vontade? Como submeter os contratos digitais e os sistemas de coleta de dados a padrões normativos compatíveis com a dignidade do cidadão-usuário? Não se trata de negar o poder da tecnologia ou das práticas comerciais, mas de submetê-las ao crivo de um constitucionalismo civil comprometido com a centralidade da pessoa.

A LGPD abriu uma fenda normativa onde antes havia silenciamento. Mas essa fenda não basta. A proteção da privacidade exige mais que compliance. Exige reconceituação do próprio modelo de negócio, à luz de uma ética informacional centrada na responsabilidade e na transparência.

Talvez a pergunta mais incômoda que devamos fazer seja, afinal, esta: quem está verdadeiramente escolhendo no ambiente digital? E, se a resposta for “ninguém”, a quem estamos responsabilizando?

— Prof. Dr. Bernardo Grossi

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