Editorial da semana: A dignidade resiste: por que dados pessoais não são mercadoria

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A dignidade resiste: por que dados pessoais não são mercadoria
Prof. Dr. Bernardo Grossi

Há uma ideia recorrente, naturalizada por muitos setores da economia, de que os dados pessoais seriam o “petróleo do século XXI”. A expressão, repetida como um mantra, é eficaz em provocar impacto, mas lamentavelmente míope em termos jurídicos e éticos. Justamente porque ignora a dimensão fundamental do que está em jogo: dados pessoais não são somente bens informacionais. São, antes, projeções da personalidade. Extensões da subjetividade humana. Sujeitos, e não objetos de circulação patrimonial.

Essa constatação, embora incômoda para o discurso econômico dominante, é indispensável se desejamos construir uma cultura de proteção de dados condizente com o paradigma constitucional do nosso tempo. A Constituição de 1988 não apenas reconheceu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III), mas também redesenhou a estrutura do direito privado, impondo a ele uma função emancipatória frente aos desequilíbrios das relações sociais. O campo da privacidade, e mais recentemente da proteção de dados, não escapa a essa transformação.

Sob esse prisma, não basta olharmos para a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) como um regramento técnico de compliance. Seu substrato é de ordem jurídico-constitucional. Por isso, nos parece equivocada a leitura que tenta reduzir suas bases legais a uma enumeração estanque, como se fossem meras hipóteses legais de tratamento de dados. A legitimidade do tratamento deve sempre se submeter à proporcionalidade, à adequação e, sobretudo, à finalidade constitucional da proteção. Quando o tratamento de dados serve apenas à rentabilidade de plataformas digitais, e não à realização de nenhum valor humano, está-se diante de instrumentalização ilegítima da personalidade.

A isso soma-se outro fenômeno preocupante: a colonização da lógica negocial, dos contratos de adesão, em particular, como espaço de consentimento artificial. A ideia de que bastaria a manifestação formal de vontade do titular para legitimar o uso irrestrito de seus dados ignora os limites da autonomia privada diante das assimetrias estruturais. Não se trata, aqui, de paternalismo jurídico, mas do reconhecimento de que atos jurídicos praticados sob desequilíbrio informacional grave desafiam os próprios fundamentos da liberdade contratual. Rodotà, ao tratar da autodeterminação informativa, já advertia que o desafio não era apenas normativo, mas político: resistir à mercantilização da subjetividade por meio do direito.

Nesse contexto, o papel da boa-fé objetiva torna-se decisivo. Não apenas como critério de controle de conteúdo negocial, mas como princípio construtivo da confiança legítima nas relações digitais. Práticas que se valem de engajamento compulsivo, engenharia comportamental e dark patterns, como os já mapeados “nagging”, “roach motel” ou “privacy zuckering”, fragmentam a autonomia e corrompem o processo decisório do titular. O que se viola, nesse caso, não é um dever contratual acessório, mas a própria ideia de reciprocidade e respeito mútuo no espaço relacional.

Frente a esse cenário, insistir na proteção de dados como direito fundamental é mais do que um gesto de coerência normativa. É um imperativo democrático. Porque reconhecer que os dados pessoais não são simples ativos de mercado, mas elementos constitutivos da identidade, é afirmar que nem tudo se compra, nem tudo se vende. E que há bens, ou melhor, há pessoas, que resistem à lógica da mercadoria.

Porque, afinal, a dignidade não é negociável. E é exatamente por isso que ela continua a ser um princípio incômodo.

Prof. Dr. Bernardo Grossi

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