Editorial da semana: Transformações e paradoxos da privacidade

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Dark patterns e boa-fé objetiva: quando a manipulação se veste de contrato
Prof. Dr. Bernardo Grossi

Há algo de inquietante quando a arquitetura das escolhas digitais se transforma em armadilha. Os chamados dark patterns — configurações visuais e fluxos interacionais que induzem o usuário a decisões premeditadamente menos conscientes ou contrárias a seus interesses — tornaram-se práticas recorrentes no design de plataformas tecnológicas. Apesar do nome sugestivamente anglófono, trata-se, na essência, de uma violação nada sutil de princípios jurídicos elementares do direito privado, com destaque para a boa-fé objetiva.

O que está em jogo não é apenas uma discussão sobre usabilidade e design, mas sobre o quanto ainda toleramos a naturalização da manipulação nas relações privadas ditas “livres”. Ao contrário de uma pretensa neutralidade contratual, essas práticas revelam intencionalidade. Elas fazem parte de uma lógica econômica que instrumentaliza a autonomia privada para fins de captação de dados e maximização de lucros — travestindo-se de consentimento o que, de fato, constitui coação ou engodo.

Tomemos como exemplo o “cookie wall”, prática em que se obstaculiza o uso de um site até que o usuário aceite todos os cookies, sem possibilidade real de configurar suas preferências. Ou o “opt-out escondido”, em que a revogação de autorizações é deliberadamente dificultada. Em ambos os casos, não há mero descuido técnico, mas uma estratégia calculada de exploração da assimetria informacional. A expressão disso, em categorias jurídicas, corresponde a uma violação dos deveres anexos derivados da boa-fé objetiva: o dever de informação clara e adequada, o dever de lealdade e o dever de transparência.

Os autores que se debruçam sobre o direito civil-constitucional reconhecem há tempos que a boa-fé deixou de ser mera cláusula moralizante para se tornar um verdadeiro princípio estruturante das relações privadas — com eficácia normativa e função limitadora da autonomia, especialmente quando há desequilíbrio estrutural entre as partes. Não à toa, Maria Helena Diniz já alertava para a função ética e social da boa-fé; Judith Martins-Costa, por sua vez, reconstruiu sua concepção como “norma de comportamento”, e não como simples ponto de referência axiológica. A manipulação algorítmica por dark patterns, nesse contexto, representa com nitidez uma ruptura dessa moldura normativa.

Há, ainda, um silêncio incômodo nas decisões judiciais sobre esse fenômeno. O discurso majoritário tende a reduzir o problema à falta de consentimento ou à suposta cláusula abusiva — categorias jurídicas importantes, sim, mas insuficientes. A lógica subjacente aos dark patterns exige uma leitura mais sofisticada, que incorpore a ideia de que o acesso à informação e o controle sobre os próprios dados não se esgotam na formalização do consentimento, mas pressupõem uma ambiência de confiança, previsibilidade e segurança, como se exige de qualquer relação de boa-fé.

É justamente isso que está ausente nos ambientes digitais que operam por opacidade e saturação. Stefano Rodotà advertia que o risco não é apenas técnico, mas antropológico: a retração da autodeterminação informativa como traço da identidade pessoal. Quando a relação entre sujeito e dado se transmuta num mercado onde escolhas são induzidas, o sujeito jurídico é substituído por uma “persona mercantilizada”, submetida à lógica do perfil e não da vontade.

Diante disso, a LGPD não pode ser lida como uma ilha normativa, nem tampouco como um sistema autocentrado. Ao contrário, sua densidade interpretativa se amplia quando integrada aos princípios do direito civil-constitucional, sobretudo àqueles que atribuem à boa-fé uma função de contenção do poder econômico e de tutela da dignidade humana. É nesse sentido que a proteção de dados e a arquitetura digital não podem continuar isentas de uma crítica estrutural: há responsabilidade civil, há quebra de confiança, há violação à boa-fé — e tudo isso é, sim, jurídica e eticamente relevante.

A pergunta que resta é se aceitaremos, passivamente, que a engenharia comportamental se torne o novo normal das relações jurídicas privadas. Ou se, ao contrário, teremos a coragem de exigir que a boa-fé, esta tão insistentemente evocada nos manuais de direito, deixe de ser platitude e se converta em critério real de controle das práticas digitais contemporâneas.


Prof. Dr. Bernardo Grossi

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