Editorial da semana: Transformações e paradoxos da privacidade

Posted by:

|

On:

|

O Direito à Privacidade na Era da Inteligência Artificial: Proteção ou Ilusão?

Prof. Dr. Bernardo Grossi

A ascensão da inteligência artificial tem sido celebrada como uma revolução inevitável, uma força transformadora que reconfigura mercados, automatiza decisões e otimiza processos. Mas, em meio a essa euforia tecnológica, cabe perguntar: onde fica o direito à privacidade quando as máquinas começam a interpretar, prever e até moldar o comportamento humano? Os dados pessoais, matéria-prima desse novo paradigma, tornaram-se o ponto central de um modelo econômico que ressignifica – e, por vezes, subverte – noções clássicas do direito privado.

O discurso predominante sugere que, com os mecanismos adequados de compliance e governança, é possível conciliar inovação e proteção de dados. Seria realmente assim? O que observamos, na prática, é um cenário em que a privacidade se dissolve na lógica algorítmica. A suposta liberdade de escolha esvazia-se diante de sistemas que manipulam preferências e modulam decisões sem que o titular do dado sequer perceba. Se o consentimento já era um instituto problemático no universo dos contratos digitais – dado o desequilíbrio informacional e a massificação dos termos de adesão –, na era da inteligência artificial ele se reduz a um formalismo, uma cortina de fumaça que disfarça o controle absoluto exercido pelas grandes corporações sobre a identidade digital dos indivíduos.

E é aqui que o direito civil-constitucional precisa ocupar espaço. A privacidade não é uma benesse concedida pelos detentores da tecnologia, nem uma mera contingência regulatória. Trata-se de um traço essencial da dignidade humana, um limite ao poder econômico e um campo de resistência à objetificação dos sujeitos. A boa-fé objetiva, enquanto princípio estruturante das relações privadas, exige transparência real e respeito à autodeterminação informativa. Da mesma forma, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais impõe barreiras à exploração desenfreada dos dados pessoais pelas big techs.

O que temos hoje, portanto, não é um novo contrato social entre indivíduos e tecnologia, mas uma assimetria onde poucos dominam a informação e a manipulam conforme seus interesses. O desafio, então, não é simplesmente regular essa nova realidade, mas redefinir os próprios termos em que a privacidade está sendo negociada. Sigamos, pois, questionando: será que ainda há espaço para a verdadeira autodeterminação informativa, ou estamos diante da completa diluição do sujeito no fluxo incessante de dados?

Posted by

in