**Consentimento, uma ficção em ruínas: o colapso do pilar contratual na era dos dados**
A ideia de consentimento, durante tempos, carregou consigo a promessa de liberdade: ao consentir, supostamente escolhemos, autodeterminamos, traçamos os limites entre o público e o privado. Na moldura liberal clássica, o consentimento representou o núcleo de legitimação das trocas contratuais, inclusive quando se tratava de renunciar à própria privacidade. Porém, em um pano de fundo marcado pela datificação crescente da vida, pela opacidade algorítmica e pela assimetria radical entre plataformas digitais e usuários, não há mais como sustentar essa ilusão sem incorrer em má-fé intelectual.
O nodo problemático da proteção de dados, hoje, está menos na ausência de consentimento e mais em sua suposta presença. A este respeito, os termos de uso das grandes plataformas funcionam como instrumentos de captura, não de autodeterminação. O “aceito” com o qual o usuário supostamente adere a políticas de privacidade não é expressão de uma escolha substantiva, mas uma obediência performática a um jogo regido por regras alheias — um “consentimento compulsório”, que traça a fronteira inquietante entre liberdade jurídica e dominação tecnológica.
O Direito Civil-constitucional, mais do que qualquer outro, possui os instrumentos teóricos para dar nome a essa distorção. Já não se trata de debater a validade formal do consentimento, mas de seu conteúdo material sob a ótica da boa-fé objetiva e da função instrumental dos contratos enquanto espaços de realização da pessoa. Nesta chave, invocar a autonomia privada sem considerar as estruturas de poder envolvidas na economia da vigilância equivale a uma abdicação teórica grave. Como alertava Stefano Rodotà, o corpo social está se tornando um corpo exposto, submetido não mais a um contrato, mas a uma engenharia de disposição constante da intimidade.
Mais ainda: a LGPD, no que tem de promissora, não deve ser lida por lentes estritamente formais. Sua eficácia deve ser interpretada à luz da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Isso significa compreender que o “consentimento” não é um talismã jurídico capaz de legitimar qualquer forma de tratamento de dados, mas um elemento que, para ser válido, deve ser informado, livre e inequívoco — e, nesse ponto, devemos ter coragem intelectual para reconhecer que, em muitos casos, simplesmente não o é.
A questão, portanto, ultrapassa a técnica legislativa. Ela nos convoca a revisitar os fundamentos filosóficos do próprio Direito Privado. A privacidade, enquanto esfera de resguardo contra a ingerência (inclusive privada), não pode ser transacionada como qualquer outro bem econômico. A pretensão de fazê-lo revela uma precariedade conceitual evidente. Judith Martins-Costa já propunha uma reconceituação dos vínculos obrigacionais, compreendendo-os como lócus de realização existencial, não de dominação privada.
A crise, portanto, é de paradigma. Não estamos diante de um impasse regulatório, mas de uma transformação do modo como o próprio conceito de sujeito de direitos é posto em risco. Quando algoritmos anteveem nossos desejos antes que os formulemos, o consentimento deixa de ser um ato de vontade e se transforma em uma cena encenada. E não se pode basear um regime jurídico justo em um teatro.
Resta-nos, então, perguntar: o que vem depois do consentimento? Que formas de proteção deverão emergir quando o mito da escolha individual não puder mais esconder a lógica de apropriação estrutural? Se queremos que o Direito cumpra seu papel civilizatório e de contenção do arbítrio, é hora de retirarmos o consentimento do pedestal e recolocá-lo onde sempre deveria ter estado — sob o crivo crítico da dignidade humana.
Prof. Dr. Bernardo Grossi