**Privacidade como espaço de resistência: repensar o consentimento, recuperar a dignidade**
Prof. Dr. Bernardo Grossi
Há uma ilusão persistente na maneira como o debate sobre proteção de dados pessoais tem sido construído: a de que o consentimento informado, livre e inequívoco seria o fundamento real da autodeterminação informativa. Como se bastasse um clique, geralmente sobre um termo pré-formatado, para que o titular de dados exercesse sua autonomia plenamente, compreendendo riscos, consequências e os reais usos de suas informações mais íntimas. A retórica da transparência, transformada em fórmula jurídica genérica, oculta uma assimetria estrutural de poderes.
Não é novidade que o consentimento tornou-se um instituto esvaziado na prática digital massificada. Na linguagem de Stefano Rodotà, ele assume feições de “contrato de adesão ontológica”: o sujeito da relação jurídica não negocia realmente os termos, mas apenas aceita ou se exclui da experiência social mediatizada. E quando a participação no mundo digital é, de fato, condição para o pleno exercício da cidadania, a pretensa liberdade de consentir não passa de abstração formal. Fala-se em escolha. Mas que escolha se dá quando o encerramento da conta bancária, a exclusão de um aplicativo de transporte ou a recusa em aceitar cookies compromete a própria funcionalidade da vida cotidiana?
É precisamente nesse ponto que a lógica civil-constitucional deve se impor com maior vigor. A proteção de dados, enquanto projeção direta da dignidade da pessoa humana, não pode submeter-se ao fetiche contratualista. O consentimento, a rigor, não é mais — e talvez nunca tenha sido na era digital — um instrumento suficiente para garantir a salvaguarda da identidade pessoal. O sujeito de dados não é apenas um agente negocial, mas um portador de direitos que antecedem e transcendem sua capacidade de disposição.
Neste cenário, não podemos seguir tratando a autodeterminação informativa como sinônimo de liberdade negocial. Trata-se, antes, da afirmação de um mínimo inviolável de integridade pessoal diante de estruturas de poder informacional. A assimetria, aqui, não é apenas técnica ou cognitiva: é existencial. No mundo dos algoritmos e das arquiteturas opacas de decisão, o que está em jogo é a própria possibilidade de o sujeito manter controle sobre sua identidade e sua representação simbólica no espaço público e comercial.
É preciso, portanto, rever radicalmente o papel do consentimento nas bases legais da Lei Geral de Proteção de Dados. A linguagem da LGPD não pode ser lida como um catálogo de autorizações, mas como a enunciação de garantias mínimas, que sinalizam a existência de um dever estrutural de cuidado e respeito à pessoa — especialmente quando calada ou vulnerável. A dignidade não se exaure em escolhas; ela se realiza sobretudo nos limites éticos que impomos às relações de poder, ainda que formalmente consentidas.
Talvez seja o momento de resgatar a ideia da privacidade como espaço de não direito, no sentido proposto por Norberto Bobbio e reelaborado por Gustavo Tepedino: um território protegido contra qualquer forma de interferência, inclusive de natureza contratual. Onde o silêncio, a opacidade e a recusa de exposição não precisem ser justificados, porque são expressão legítima da intimidade como valor existencial.
Se a proteção de dados pessoais pretende ser efetiva, ela deve parar de perguntar “com base em que consentimento?”, e começar a indagar: “em nome de que dignidade?”. Por vezes, proteger o outro é não repetir a pergunta.
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